O instituto da emendatio libelli, disposto no artigo 383 do Código de Processo Penal, trata da possibilidade do magistrado, sem modificar a situação fática narrada na peça acusatória, entender por uma atribuição jurídica diversa, aplicando assim o dispositivo legal que entende ser o correto e tomando as providências cabíveis nos termos dos parágrafos do aludido artigo, quais sejam:
§ 1o Se, em consequência de definição jurídica diversa, houver possibilidade de proposta de suspensão condicional do processo, o juiz procederá de acordo com o disposto na lei.
§ 2o Tratando-se de infração da competência de outro juízo, a este serão encaminhados os autos.
Supondo que o magistrado ao proferir a sentença condenatória tenha assim entendido:
“Ante o exposto, na forma do art. 381, V, do CPP, julgo PARCIALMENTE PROCEDENTE a exordial acusatória a fim de DESCLASSIFICAR para o crime do artigo 28, caput, da Lei n. 11.343/06 o fato delituoso imputado ao acusado FULANO DA SILVA e CONDENÁ-LO à pena de 4 (quatro) meses de prestação de serviços à comunidade, em entidade a ser designada pelo Juízo da Execução Penal, à razão de 1 (uma) hora por dia de condenação (artigo 46, § 3º, do Código Penal), por infração àquele dispositivo legal. […]”
Em primeiro lugar, nos termos do artigo 593 do Código de Processo Penal o qual expõe que das sentenças definitivas de condenação ou absolvição o recurso cabível é o de Apelação, onde em sede preliminar o advogado deve sustentar que o magistrado ao aplicar a desclassificação do crime, agiu erroneamente ao não remeter os autos ao juízo competente para o devido processamento e julgamento, pois, a apuração da infração prevista no artigo 28 da lei de drogas se dá através de rito especial, o que resulta em uma sentença proferida por um juízo materialmente incompetente para o processamento e julgamento do presente caso.
Corroborando com o fundamento trazido no art. 383, § 2º, do Código de Processo Penal, anteriormente citado, temos o disposto no artigo 48, § 1º, da Lei de drogas, que assim expõe:
“Art. 48. O procedimento relativo aos processos por crimes definidos neste Título rege-se pelo disposto neste Capítulo, aplicando-se, subsidiariamente, as disposições do Código de Processo Penal e da Lei de Execução Penal.
§ 1º O agente de qualquer das condutas previstas no art. 28 desta Lei, salvo se houver concurso com os crimes previstos nos arts. 33 a 37 desta Lei, será processado e julgado na forma dos arts. 60 e seguintes da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, que dispõe sobre os Juizados Especiais Criminais.”
Como entendimento jurisprudencial citam-se os julgados do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, que assim entende:
“APELAÇÃO CRIMINAL. ACUSADO DENUNCIADO PELA PRÁTICA DE TRÁFICO DE DROGAS (ART. 33, CAPUT, DA LEI N. 11.343/2006). SENTENÇA QUE O CONDENOU TÃO SOMENTE PELA INFRAÇÃO REFERENTE À POSSE DE DROGAS PARA USO PESSOAL (ART. 28 DA LEI N. 11.343/06). RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. ALMEJADA CONDENAÇÃO DO ACUSADO NOS TERMOS DA DENÚNCIA. IMPOSSIBILIDADE. APREENSÃO DE MODESTA QUANTIDADE DE DROGA EM PODER DO RÉU. ADMISSÃO DA PROPRIEDADE DA DROGA. ALEGAÇÃO, CONTUDO, DE POSSE PARA CONSUMO PRÓPRIO. AUSÊNCIA DE ELEMENTO A INDICAR, COM SEGURANÇA, QUE O ENTORPECENTE ERA DESTINADO AO COMÉRCIO ILÍCITO.DÚVIDA QUE SE RESOLVE EM FAVOR DO RÉU. DESCLASSIFICAÇÃO DA CONDUTA TÍPICA CORRETAMENTE LEVADA A EFEITO. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.
(…)
ANULAÇÃO, EX OFFICIO, DA FIXAÇÃO DE PENA REALIZADA PELA DECISÃO DE PRIMEIRO GRAU. DESCLASSIFICAÇÃO OPERADA QUE ACABOU POR RECONHECER A OCORRÊNCIA DE CRIME DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO. REMESSA DOS AUTOS AO JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL, ONDE RECAI A COMPETÊNCIA PARA JULGAMENTO DO FEITO.”
Se, ao operar desclassificação e dar nova tipificação aos fatos praticados pelo acusado, o decisum de primeiro grau acaba por reconhecer a ocorrência de mero crime de menor potencial ofensivo, compete ao Juizado Especial Criminal julgar o feito, nos termos da Lei n. 9.099/95.” – grifo meu. (TJSC. Apelação Criminal n. 0003916-03.2018.8.24.0023, Capital, Relator Desembargador Paulo Roberto Sartorato)
Ainda nesse sentido:
“TRÁFICO DE DROGAS. ARTIGO 33, CAPUT, DA LEI 11.343/2006. SENTENÇA CONDENATÓRIA. RECURSO DA DEFESA. PLEITO DE DESCLASSIFICAÇÃO PARA PORTE DE ENTORPECENTES PARA CONSUMO PESSOAL. FRAGILIDADE PROBATÓRIA. ÍNFIMA QUANTIDADE APREENDIDA. NÃO APREENSÃO DE DINHEIRO, USUÁRIOS OU UTENSÍLIOS COMUNS À NARCOTRAFICÂNCIA. PAI DO ACUSADO OUVIDO EM JUÍZO QUE CONFIRMA SUA CONDIÇÃO DE USUÁRIO. RELATO DE POLICIAL MILITAR QUE REFORÇA DEPOIMENTO PATERNO, DEMONSTRANDO QUE POR VEZES NECESSITAVA ACORRENTAR O ACUSADO EM CASA. RECONHECIMENTO IMPERIOSO DO DELITO DE PORTE DE ENTORPECENTES PARA USO PESSOAL. ARTIGO 28, CAPUT, DA LEI DE TÓXICOS. DESCLASSIFICAÇÃO DETERMINADA. LEI N. 9.099/1995. REMESSA DOS AUTOS AO JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL. INVIABILIDADE DE IMPOSIÇÃO DE QUALQUER RESTRIÇÃO OU OBRIGAÇÃO, SOB PENA DE DUPLICIDADE DE APENAÇÃO. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE ANTE O CUMPRIMENTO ANTECIPADO. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.” (TJSC. Apelação Criminal n. 0142038-05.2014.8.24.0033, Itajaí, Relator Desembargador Jorge Schaefer Martins)
PENAL. PROCESSUAL PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME CONTRA A SAÚDE PÚBLICA. TRÁFICO DE DROGAS (LEI 11.343/2006, ART. 33, CAPUT). SENTENÇA CONDENATÓRIA. RECURSO DA DEFESA. […] DESCLASSIFICAÇÃO DO CRIME DE TRÁFICO DE DROGAS PARA O DELITO DE POSSE DE DROGAS PARA O CONSUMO PESSOAL. ACOLHIMENTO. […] INSUFICIÊNCIA PROBATÓRIA DE ATO VINCULADO A NARCOTRAFICÂNCIA. DELITO DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO. REMESSA DOS AUTOS AO JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL. […] – Diante da insuficiência probatória em relação à destinação da quantia em dinheiro apreendida, bem como o fato tratar-se de mero ato preparatório, não punível no ordenamento jurídico, não há falar em prática da conduta de tráfico de drogas. – A apreensão de pequena porção de maconha e crack em poder da agente, que prontamente assume a propriedade e alega mero consumo pessoal, sem a existência de outros elementos a vinculá-la na narcotraficância, viabiliza a desclassificação para a conduta prevista no art. 28, caput, da Lei 11.343/2006. (TJSC. Apelação Criminal n. 0001388-51.2013.8.24.0126, de Itapoá Relator: Des. Carlos Alberto Civinski. Julgado em 30.5.2019).
APELAÇÃO CRIMINAL (RÉU PRESO). CRIME CONTRA A SAÚDE PÚBLICA. TRÁFICO DE DROGAS (ART. 33, CAPUT, DA LEI N. 11.343/06). SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA DA DENÚNCIA. RECURSO EXCLUSIVO DA DEFESA. PLEITO DE DESCLASSIFICAÇÃO DO CRIME DE NARCOTRAFICÂNCIA PARA CONDUTA PREVISTA NO ART. 28 DA LEI DE DROGAS. REVISÃO DA CLASSIFICAÇÃO JURÍDICA E, AINDA, DA DOSIMETRIA. CIRCUNSTÂNCIAS DO FLAGRANTE NÃO ESCLARECIDAS. INSUFICIÊNCIA DE ELEMENTOS PROBATÓRIOS PARA SUSTENTAR O JUÍZO DE CONDENAÇÃO PELO CRIME DE TRÁFICO DE ENTORPECENTES. MERA SUPOSIÇÃO. DÚVIDA QUE SE RESOLVE A FAVOR DO APELANTE. QUANTIDADE PARCA DE DROGAS APREENDIDA. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO, PARA ACOLHER A TESE DE DESCLASSIFICAÇÃO DA CONDUTA DE OFÍCIO, CONCEDER HABEAS CORPUS. DESCLASSIFICAÇÃO. A fragilidade do conjunto probatório acerca dos contornos da conduta, em especial a ausência de prova sobre a destinação da pequena quantidade de droga apreendida (1,7 gramas de crack), impõe a desclassificação jurídica da conduta para aquela prevista no art. 28 da lei n.º 11.343/06 e remessa dos autos ao Juizado Especial Criminal da Comarca de origem, competente para delitos de menor potencial ofensivo, para que aplique a reprimenda adequada com a observância dos institutos despenalizadores cabíveis no caso concreto. (TJSC, Apelação Criminal n. 0000946-41.2017.8.24.0063, de São Joaquim Relator: Desembargador Júlio César M. Ferreira de Melo. Julgado em 9.10.2018).
Por fim, a competência para aplicação da lei penal é do Juizado Especial Criminal, equivocando-se o juízo de piso, ao não realizar a remessa dos autos ao juízo competente, pois, no caso ora discutido a não observância da remessa dos autos, acarreta extremo prejuízo ao acusado, pois acaba suprimindo direitos que lhe são assegurados, como por exemplo, os benefícios da transação penal e da sursis processual, além dos procedimentos previstos na forma do artigo 60 e seguintes, da Lei 9.099/95, Inclusive a depender do caso concreto pode-se chegar até mesmo à uma prescrição da pretensão punitiva do crime, matéria já tratada em outro artigo.